O impasse burocrático que desencadeou a suspensão da captação e do transplante de órgãos em Campo Grande já tirou a chance de cura de pelo menos 23 pacientes em Mato Grosso do Sul e no restante do País.
Conforme a coordenadora da Organização de Procura de Órgãos (OPO) da Santa Casa, Patrícia Berg Leal, o cenário alarmante impediu que dez rins, cinco fígados, quatro pâncreas e quatro corações fossem doados em agosto.
“Em agosto, 23 órgãos que estavam aptos e poderiam salvar inúmeras vidas aqui e fora do Estado deixaram de ser doados”, frisou a coordenadora da OPO Santa Casa.
Ao Correio do Estado, a profissional da educação Anne Raissa Roberto Ferro, 29 anos, na fila por um transplante de rim desde abril, relatou que os pacientes estão se sentindo desassistidos e negligenciados pelo poder público.
“A sensação é de não ter mais nenhuma esperança de realizar o tão desejado transplante. Pois a alternativa passou a ser nos deslocarmos para outro estado atrás disso, o que demanda tempo e dinheiro que não temos, justamente por usarmos o Sistema Único de Saúde [SUS]”, desabafou Anne.
Desde o dia 8 de agosto, o laboratório de histocompatibilidade Bio Molecular, o único habilitado em Mato Grosso do Sul para exames de rejeição e compatibilidade de transplante, suspendeu seus serviços porque o contrato não foi renovado com a Prefeitura de Campo Grande. O Correio do Estado tentou contato com o Bio Molecular, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
IMPASSE
Em nota, a Secretaria Municipal de Saúde (Sesau) afirmou que a contratação do serviço é de responsabilidade da Secretaria de Estado de Saúde (SES), “conforme estabelece a Portaria de Consolidação nº 4 do Ministério da Saúde, de 28 de setembro de 2017, na Seção II, art 6º, é de competência dos governos estaduais a coordenação regional do Sistema Nacional de Transplantes”, detalha.
Segundo a Sesau, o município notificou a SES em janeiro deste ano sobre a necessidade da renovação do convênio, no entanto, não houve nenhuma deliberação.
A Pasta também citou o artigo 7º, em que aponta as secretarias estaduais como responsáveis por estruturar as chamadas Centrais de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos (CNCDO).
No jogo de empurra para achar um culpado pela negligência com o quadro de saúde dos pacientes, a SES afirmou que abriu processo emergencial por meio da modalidade de inexigibilidade de licitação, com o objetivo de atender os pacientes que necessitam deste serviço.
A alternativa da Secretaria de Estado de Saúde diante dessa situação é que esses exames sejam feitos em outros estados, com tratativas mais avançadas para a contratação de um laboratório em Goiás.
Ao Correio do Estado, o titular da SES, Flávio Britto, explicou que o recurso para garantir o serviço dos exames é proveniente do Fundo de Ações Estratégicas e Compensação (Faec) do Ministério da Saúde e equivale a cerca de R$ 6 milhões.
“Confesso que não acreditávamos que chegaríamos a esse ponto por uma decisão da Sesau, que depois de mais de 15 anos descobriu que não é mais dona pelo serviço contratado. O Estado não ficou inerte, e para contratar esse laboratório de Goiás nós precisamos aprovar essa medida na Comissão Intergestora Bipartite [CIB] daqui e na CIB de Goiás e comunicar então o Ministério da Saúde para que ocorra a autorização do nosso atendimento”, detalhou o secretário.
Segundo Britto, a parceria com um laboratório de outro estado é uma logística viável e que, sem precisar uma data, deve ser feita o mais rápido possível.
“As companhias aéreas fazem de forma humanitária esse translado das amostras para análise [dos exames], e se for necessário nós poderemos disponibilizar o avião do governo de MS. É uma logística que dá para executar”, completou. O titular da SES afirmou ainda que o Estado estuda a possibilidade de construção de um laboratório próprio de histocompatibilidade.
ANGÚSTIA
Conforme a médica nefrologista Rafaella Campanholo, responsável pelos transplantes renais na Santa Casa, a rotina diária dos atendimentos no ambulatório de diálise tem sido angustiante.
“É um descaso com aqueles que têm doenças crônicas. E desses rins que estavam aptos, poderíamos ter aproveitado todos, principalmente dos doadores mais jovens”, enfatizou a médica.
Para Anne, o sentimento é de total revolta com as pessoas e instituições que deveriam viabilizar o transplante. “Vimos que nossa esperança de uma qualidade de vida não tem valor algum para quem assina os papéis”, reiterou.
IMPACTO NA SAÚDE
A coordenadora médica da OPO, Patrícia Berg Leal, explica ainda que o impacto no serviço de captação é grande, tendo em vista que, das 10 famílias entrevistadas sobre a possibilidade de doação de órgãos, seis não autorizaram pelo receio da demora para liberar o corpo.
O reflexo dessa situação difícil é sentido pelos 79 pacientes da Santa Casa que estão em tratamento de diálise crônica. Destes, 36 estão listados ou em estudo para entrar na fila por um rim.
É importante salientar que a Santa Casa de Campo Grande não faz parte do processo de negociação das autoridades em saúde pública com laboratórios, mas é prestadora desse serviço à população de MS.
Fonte: Correio do Estado